Investidores de baixa renda descobrem a Bovespa e despertam a atenção do mercado de capitais. Depois de iogurtes, frangos e geladeiras, será a vez das ações?
A partir de meados da década de 90, a emergência da classe C transformou diversos setores da economia brasileira. Em segmentos como os de telefonia celular, varejo e veículos, para citar alguns, esses consumidores passaram a ser um dínamo de crescimento e, por isso, hoje ninguém pode subestimar o poder de compra das famílias com renda mensal entre 1 500 e 5 000 reais - um contingente de 95 milhões de pessoas. É com base nessas experiências que o mercado de capitais acompanha com atenção a chegada da classe C à bolsa de valores. Um levantamento feito por EXAME junto às corretoras (não há estatísticas oficiais sobre o tema) indica que há cerca de 30 000 investidores da classe C na Bovespa. O número ainda é insuficiente para lotar um Morumbi ou Maracanã, é verdade. Mas é quase o triplo do que havia em 2008 e mais de dez vezes a soma de 2006. Mais importante que isso: o recente movimento em direção à bolsa pode ser apenas o início de uma tendência transformadora do mercado. Uma pesquisa recente do instituto Data Popular mostrou que mais da metade das famílias de classe C consegue fazer economia, ainda que de forma irregular. Se apenas uma parcela desse pessoal migrar para a bolsa, o Brasil poderá repetir o fenômeno de popularização do mercado já visto em economias maduras, como a americana.
No passado, a chegada de investidores de baixa renda à bolsa já foi vista como um problema. Uma das histórias mais conhecidas da crise de 1929 é a de Joseph Kennedy, pai do ex-presidente americano John Kennedy. Conta-se que ele teria decidido vender suas ações pouco antes da derrocada da bolsa de Nova York porque ouviu seu engraxate comentar animadamente sobre os papéis que havia comprado. “Se até os engraxates estão aplicando em ações, é sinal de problemas”, teria dito Kennedy. Mais do que o número de aplicadores - nesse período, pouco mais de 1% dos americanos tinham ações -, o que de fato preocupava investidores mais experientes era a agressividade com que os novatos entravam na bolsa. Em poucos anos, milhares de americanos colocaram quase todas as suas economias no mercado, e alguns chegaram a tomar dinheiro emprestado para comprar e vender ações no curtíssimo prazo. Hoje, 88% dos americanos aplicam na bolsa como estratégia para a aposentadoria - e, com isso, a entrada de faxineiros, porteiros e taxistas no mercado deixou de ser vista com desconfiança.
A POPULARIZAÇÃO DO MERCADO de ações que começa a ganhar corpo no Brasil guarda semelhanças com o movimento que ocorreu nos Estados Unidos não em 1929, mas na década de 50. Foi quando a classe média ascendente conseguiu economizar parte da renda e a bolsa de Nova York colocou em prática um programa de aproximação com o cidadão comum - um exemplo foi a criação de uma rádio com informações sobre ações. Em cerca de 15 anos, o percentual de acionistas subiu de 4% para 10% da população. Esse aumento está por trás da expansão do mercado de capitais no país: na década de 50, o valor das empresas listadas dobrou e a bolsa americana se tornou uma opção de financiamento para um número maior de companhias - empreendedores e donos de empresas recém-criadas, como HP e Polaroid, abriram o capital para levantar recursos e expandir seus negócios, coisa rara no passado. Mas foi só a partir dos anos 80 que a classe média dos Estados Unidos deixou-se seduzir pela bolsa. Atualmente, metade dos americanos aplica em ações, diretamente ou via fundos, e estima-se que 20 milhões deles tenham renda familiar mensal inferior a 4 000 dólares, o que os coloca na base da pirâmide social local.
Por aqui, cerca de 1% da população - 2 milhões de pessoas - investe na bolsa ou em fundos de ações. Por enquanto, os aplicadores de renda mais baixa são uma minoria incapaz de mexer com o mercado. Mas somente na classe C há cerca de 14 milhões de potenciais investidores, segundo a pesquisa do instituto Data Popular. “Essas pessoas, que representam 15% da classe C, conseguem poupar regularmente e parte delas começa, aos poucos, a buscar aplicações que rendam mais que a tradicional caderneta de poupança, que ainda é a aplicação preferida desse público”, diz Renato Meirelles, sócio do Data Popular. O hábito de poupar - comum em países asiáticos, mas ainda raro no Brasil - pode ser o novo salto transformador desse público. Os primeiros reflexos do aumento da renda dessa parte da população foram o crescimento e a sofisticação do consumo - foi assim com iogurtes, frangos, celulares, geladeiras, fogões e carros nos últimos anos. Agora, espera-se, chegou a vez das aplicações financeiras. Do ponto de vista macroeconômico, a entrada em cena de novos investidores pode ser vital para elevar a capacidade de poupança do país, uma lacuna antiga da economia brasileira. No caso das bolsas, a entrada de mais pessoas físicas tende a tornar o mercado menos volátil. Quanto mais aplicadores, menor a influência dos fundos de pensão e outros gigantes institucionais sobre os preços das ações. “Durante a crise de 2008, ficou evidente no Brasil a importância das pessoas físicas para a bolsa. Enquanto muitos estrangeiros debandaram, boa parte desses acionistas ficou, o que ajudou a conter a queda do mercado”, diz Paulo Oliveira, diretor executivo da BM&F Bovespa.
No Brasil, os neófitos do mercado de ações são pessoas como o brasiliense Raimundo Albuquerque Júnior, de 38 anos, que faz bicos como pintor, encanador, motorista e até passeador de cachorros e ganha, junto com a mulher, 4 000 reais por mês. “Faço todo tipo de serviço, só não mato”, diz. Albuquerque começou a investir na bolsa há pouco mais de dois anos, depois de receber 2 000 reais da mãe - antes disso, tinha só uma reserva de 800 reais na poupança. “Eu queria aplicar em ações há algum tempo, porque via muitas notícias de que a bolsa estava subindo muito. Mas achava que precisava de bem mais dinheiro para entrar.” Ao descobrir que os 2 000 reais eram suficientes, aplicou em papéis da Petrobras. Mais tarde, conseguiu economizar mais 500 reais e passou a comprar ações do Banco do Brasil, da CSN e da Gerdau. “Estou estudando o mercado e vou à biblioteca pública sempre que posso para ler os jornais e acompanhar as notícias das empresas nas quais invisto. Quero continuar aplicando na bolsa por dez ou 20 anos”, diz Albuquerque Júnior, que participou de três cursos gratuitos feitos pela sua corretora, a XP. Seu exemplo ilustra também os riscos da bolsa: as aplicações já chegaram a valer mais de 4 000 reais, mas caíram com a crise, se recuperaram recentemente e hoje ele tem quase 3 000 reais em carteira.
NO PASSADO, ALGUNS incentivos do governo levaram parte dos investidores de classe C ao mercado - um deles foi a possibilidade de usar os recursos do FGTS para comprar ações da Petrobras e da Vale; outro foi a distribuição de ações de empresas de telefonia a quem comprava uma linha telefônica. A recente adesão de membros da classe C à bolsa marca uma nova fase, já que, desta vez, os investidores não são movidos por um incentivo específico. Um dos obstáculos à ascensão da baixa renda na bolsa são as taxas de negociação cobradas pelas corretoras, altas para a maior parte desses investidores. A mais pesada é a taxa de custódia, que geralmente custa entre 7 e 30 reais e deve ser paga todos os meses. “Isso significa que o investidor que só tem 1 000 reais na bolsa pode pagar até 3% ao mês de custódia”, diz Roberto Lee, diretor da Win Trade, home broker da Alpes Corretora. As corretoras que querem crescer na baixa renda já começaram a baixar suas taxas - é o caso da Tov, da Ativa e do Banif, em que o cliente pode ficar isento da custódia. “Queremos ser a Casas Bahia da bolsa”, diz Valestan Ribeiro, gerente de home broker da Tov.
Na tentativa de atrair novos clientes, a corretora carioca Um Investimentos realiza cursos na faculdade Anhanguera, que oferece mensalidades a preços acessíveis. “São cursos bem básicos para ajudar os estudantes a entender como a bolsa de valores funciona”, diz Rafael Giovani, gerente da Um Investimentos. Na corretora gaúcha XP, os corretores são preparados para atender esse público por telefone, caso eles não queiram - ou não possam - operar pela internet. “O cliente que hoje tem 2 000 reais em aplicações pode ter 5 000 reais amanhã, e queremos crescer com ele”, diz Rossano Oltramari, sócio da XP. Números da Fundação Getulio Vargas mostram que, de cada 100 pessoas da classe D, 30 sobem anualmente para a classe C. A mudança também ocorre entre quem já é classe C: de cada 100 pessoas, cinco são promovidas à B. Se depender do passeador de cachorros Albuquerque Júnior, o contingente de aplicadores vai mesmo crescer. “Minha mulher ainda acha que bolsa é uma roleta-russa, mas ainda vou fazê-la mudar de ideia”, diz.
Fonte! Chasque publicado no dia 24 de janeirro de 2010 no galpão virtual do CORECON - RJ (http://www.corecon-rj.blogspot.com/), que teve com fonte o Portal Exame, por Guilherme Fogaça
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