quinta-feira, 8 de novembro de 2012

‘O negro está vencendo pela cultura, não pela força bruta’

Ex-menino de rua, o desembargador gaúcho Sejalmo de Paula Nery se aposenta compulsoriamente aos 70 anos de idade. Recorda seus tempos de apanhador de lenha e de morador de patronatos. Lembra das risadas que ouviu, da sala inteira, quando, aos 10 anos de idade, anunciou que “queria ser advogado”.

No dia 13 de março do ano 2000, quando tomou posse como desembargador do TJ-RS, o cidadão Sejalmo Sebastião de Paula Nery, então com 57 anos de idade, surpreendeu com seu discurso três ou quatro centenas de pessoas que não conheciam detalhes dos bastidores do currículo do empossando: ele tinha sido menino de rua, que começou a trabalhar com 10 anos, juntando lenha nos campos frios de Vacaria. Fora criado desde cedo em patronatos, sem a presença dos pais. “Em 15 anos, devo tê-los visto meia dúzia de vezes, esparsamente” - confessou.

Na ocasião, Sejalmo falou também sobre as reações que viu e ouviu – ainda menino – ao dizer de seu sonho de ser advogado. E quando, 30 anos mais tarde, escutou que seria “impossível” sua pretensão de ingressar na magistratura.

Ontem (8), Sejalmo - alcançado pela compulsória (70 de idade) - fez sua despedida da 14ª Câmara Cível, onde foi presidente por mais de oito anos. Pouco antes, ele recebeu em seu gabinete o Espaço Vital. A conversa foi longa. O papo fácil verteria algumas páginas de jornal. O editor pinçou algumas das perguntas e respostas mais interessantes.

EV - O senhor sofreu um grave acidente quando era criança?

Sejalmo -
Ainda bebê, com menos de um ano, nossa casa incendiou, eu fui salvo com queimaduras e fiquei com graves sequelas. A situação só foi corrigida, parcialmente, após os 20 anos de idade, depois de inúmeras cirurgias reparadoras. Relembro – como fiz no meu discurso de posse – dos grandes médicos Antonio Estima Costa e David Gusmão, que me atenderam de forma humanitária e competente. Apesar desses registros do passado, nunca tive nada do que me envergonhar. Pelo contrário, tenho orgulho do que fui e do que sou, de minhas origens e das minhas lutas, de meus ancestrais, principalmente de meus avós maternos e de minha mãe. Dela herdei a coragem, a firmeza, a persistência e o amor a Deus.

EV - De sua carreira de operador do Direito, algum fato marcante?

Sejalmo -
O mais marcante, ainda que relacionado com o Direito, vem da minha infância e teve desdobramentos 30 anos depois. Num internato agrícola, no Interior gaúcho, aos nove ou dez anos de idade, fiz uma redação estimulada, escrevendo que pretendia ser advogado. Quando a professora leu o meu texto, foi o motivo de risada de todos. A pretensão do garoto pobre foi considerada absurda. Devo ter ficado vermelho, talvez envergonhado, mas segui em frente. Quase o mesmo ocorreu quando eu já estava por concluir o curso de Direito, na Unisinos, em 1971. Eu revelei, no meu círculo de relações, que queria ser juiz, e não faltaram colegas e professores que disseram que a minha pretensão era impossível.

EV - Sua carreira na magistratura foi longa, são 32 anos. Por que o senhor demorou mais do que o habitual para chegar ao TJ-RS como desembargador, há 12 anos?

Sejalmo -
Depois de ser apanhador de lenha, consegui estudar e aos 18 de idade já começar a lecionar aos que sabiam pouco ou nada. Com 30 anos de idade, eu já era vereador em São Leopoldo, chegando a presidente da Câmara Municipal em 1975. Na magistratura, nunca me importei com a forma de promoção: ela sempre foi por antiguidade. Afinal, foi obedecido um dos critérios legais, que é o da antiguidade. Os que tinham o poder decisório deixaram de lado questões subjetivas, como o merecimento. Eu me formei advogado em 1971, mas só consegui ser aprovado como pretor nove anos depois. Mas os revezes sempre serviram para que eu abrisse os olhos e percebesse que as coisas boas estão dentro de nós.

EV - O senhor sempre se refere carinhosamente à sua esposa. Ela é um marco em sua vida?

Sejalmo -
Há cerca de 50 anos, conheci Elenita, pessoa excepcional e companheira de todas as horas. Só de casamento são 35 anos. Crescemos e envelhecemos juntos. Desta união, tivemos quatro filhos carnais e mais dois de criação. Verdadeira leoa na defesa dos filhos e de nosso lar, ela aposentou-se e abriu uma creche-berçário, mantida por nós, onde cuidou dos nossos netos - hoje já crescidos, adultos e encaminhados - e de dezenas de outras crianças. Se é verdade que nesta longa jornada como cidadão e como juiz encontrei pessoas insensíveis e más, também é verídico que me deparei com muitíssima gente generosa e bem intencionada.

EV - Esta semana, o país mais poderoso do mundo reelegeu um negro como seu presidente. Como o senhor vê o resultado da eleição?

Sejalmo -
 O negro está cada vez mais se esforçando e vencendo pela cultura e não pela força bruta. Somente a afirmação da singularidade do homem de cor e a luta apaixonada por democracia, igualdade de oportunidade e liberdade poderão desmascarar e derrotar o monstro anacrônico e ridículo, ainda existente, mas felizmente em decréscimo,  que se chama racismo. Como a vida não é apenas para ser vivida, mas para ser sonhada, eu estou em luta permanente contra as dificuldades, barreiras reais e invisíveis e descrença. Empenho-me pela aplicação do direito, da justiça, da liberdade e da igualdade. Eu estou sonhando com as melhorias, mas também fiz e sigo fazendo a minha parte.

Fonte! Chasque de Marco A. Birnfeld, publicado na coluna "Espaço Vital", do Jornal do Comércio, de Porto Alegre - RS.

Retrato: Antônio Paz/JC

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