Desde 2012, o Esporte Clube Cruzeiro
é uma equipe nômade. O pequeno e tradicional time de Porto Alegre
vendeu seu antigo estádio na capital gaúcha e decidiu se mudar para
Cachoeirinha, na região metropolitana, com o plano de erguer uma arena
multiuso longe da concorrência de Grêmio e Internacional. Mas a missão
foi mais difícil que o previsto - seis anos depois, só 70% das obras
foram concluídas. Rebaixado no campeonato estadual em março, o clube
passou a procurar alternativas de financiamento, e agora aposta em uma
saída tecnológica.
Para ter acesso ao sistema, os investidores devem comprar tokens da Iconic, uma startup da capital gaúcha que fez parceria com o clube, utilizando "ether", uma criptomoeda avaliada hoje em US$ 740 a unidade. O valor mínimo para entrar no projeto é de 0,1 ether, ou cerca de R$ 263.
Como contrapartida ao investimento, os usuários terão a chance de interferir diretamente em todos os aspectos da gestão do Cruzeiro, definindo desde questões estéticas, como a cor dos uniformes alternativos, a até mesmo aspectos cruciais para o sucesso da equipe - como a escalação, as substituições e, inclusive, as transferências dos atletas.
O projeto, ainda em elaboração e sujeito a diversos riscos financeiros, foi batizado de Cruzeiro Open Source, e a promessa é transformar os investidores em gamers da vida real.
Futebol com algoritmos
"Por trás de cada decisão, que vai ser levada para a coletividade dos gamers, vão existir algoritmos que conferem maior peso aos usuários que conseguiram demonstrar anteriormente a sua capacidade de decisão", explica Jonathan Darcie, diretor-executivo da Iconic.
O peso dos votos deve levar em consideração tanto a quantidade de tokens (tamanho do investimento) de que dispõe o usuário quanto a competência demonstrada por sua escolhas anteriores. "A ideia é que os votos tenham peso qualificado, para evitar que se tomem decisões descompromissadas como, por exemplo, escalar um centroavante para jogar de goleiro. Algoritmos de decisão, quando bem desenvolvidos, filtram esse tipo de ocorrência", garante.
Na prática, a ingerência dos apoiadores será quase total, até onde as regras do esporte permitirem. Influenciar nas substituições, por exemplo, pode ser difícil: "Existem algumas restrições ligadas a partidas em curso, sobre comunicações do técnico com pessoas externas", admite Darcie.
O restante, porém, estaria nas mãos dos gamers, inclusive a escalação inicial e a disposição tática. "O técnico continua tendo um papel muito importante: ele tem a responsabilidade de fazer com que as decisões dos usuários aconteça da melhor forma possível, fazendo os ajustes finos durante o jogo", diz.
Outro ponto ainda em desenvolvimento é a maneira como a ferramenta de transferências vai funcionar, mas é certo que os usuários terão voz nas negociações.
Para o lado dos investidores, o retorno viria pela suposta valorização da própria moeda adquirida para poder controlar o time. Nesse caso, entram em cena as clássicas leis de mercado. "O token vai se valorizar conforme houver maior demanda para participar da gestão do clube. Se 10 mil pessoas comprarem moedas nessa oferta inicial, quando a ferramenta se popularizar ainda mais elas poderão revender com uma grande valorização no momento em que houver, por exemplo, 150 mil interessados", explica o diretor-executivo da Iconic.
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Divulgada em inglês, a plataforma busca atrair interesse internacional: "Queremos mostrar que existe uma forma de nos relacionarmos que não é só de torcida, mas também de participação, de ingerência, que permitirá ao Cruzeiro ter seguidores na Ásia, África, Europa, em qualquer lugar do mundo", diz Darcie.
Investidores devem conhecer merdado
Para especialistas no mercado da criptomoeda, investimento na proposta do Cruzeiro seria uma aposta ainda um pouco às cegas, já que esse é um mercado quase que inédito.
"Quando um investidor compra um token emitido por uma empresa ou um clube de futebol, ele está na verdade comprando uma pequena participação numa nova rede econômica que pode vir a crescer muito, ou pode vir a desmoronar", explica Michael Araki, professor do Departamento de Empreendedorismo e Gestão na Universidade Federal Fluminense, que estuda moedas digitais.
"Fazendo uma analogia, seria como comprar um lote de terreno em uma cidade que está para ser construída. Quanto mais pessoas migrarem para lá, mais seu terreno valerá, mas não custa lembrar que seu terreno está vinculado à prosperidade dessa cidade".
Na visão do pesquisador, o fato de a iniciativa partir de um clube de futebol pode ser um diferencial importante em relação a outras ICOs.
"Clubes esportivos já contam com uma comunidade de torcedores que tende a ser fiel e não tende a ficar especulando com o token do clube", analisa. "Mas é preciso ter cuidado com a segurança e manutenção do valor do token. Resta saber se a equipe envolvida está consciente das implicações e se terá a capacidade de criar uma rede econômica própria que realmente seja interessante para os 'torcedores-investidores'".
Para Renato Rochman, coordenador do mestrado em Engenharia Financeira da Fundação Getúlio Vargas, os interessados devem estar conscientes dos riscos inerentes à nova tecnologia.
"A emissão via ICO é o meio mais fácil de captar recursos sem emitir uma ação ou um título de dívida. Criar uma moeda não é complicado. A questão é como remunerar as pessoas, qual a estratégia do projeto, que tipo de amparo legal têm os investidores", alerta. "Os ICOs são novos no Brasil, e uma grande dúvida ainda é: se houver algum problema, como a Justiça vai encarar isso?"
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Fundado em 1913 e campeão gaúcho 16 anos mais tarde, o Cruzeiro foi considerado a terceira força do Rio Grande do Sul até meados dos anos 50. Sempre correndo atrás da popularidade Grêmio e Internacional, mas com frequência derrotando os dois gigantes em campo, o "estrelado" tornou-se famoso pelo seu pioneirismo: em 1953, foi o primeiro clube gaúcho a excursionar pela Europa, chegando a empatar com o Real Madrid de Di Stéfano. O vídeo daquele jogo é um dos trunfos usados na campanha para apresentar o Cruzeiro ao público europeu.
"Quando nós apresentamos esse projeto internamente, eu até imaginava encontrar alguma resistência, até porque temos muitos sócios de mais idade", relata Paulo Doering, presidente do conselho deliberativo do clube. "Mas acabou sendo o contrário: os membros da direção entenderam o potencial da ideia e viram como uma chance de preservar o legado do Cruzeiro, sendo novamente pioneiros."
A plataforma virtual fez o clube deixar de lado a ideia de ceder parte das categorias de base a empresários, estratégia comum em clubes do interior, que vinha sendo cogitada como maneira de angariar recursos para concluir as obras.
O uso da tecnologia é encarado como uma maneira de atrair um público jovem e renovar a torcida do clube, que foi diminuindo ao longo das décadas. Nos anos 40, o Cruzeiro possuía o maior estádio privado de Porto Alegre e regularmente registrava públicos próximos a 10 mil pessoas. Em 2018, ainda sem concluir sua nova arena e precisando jogar em um estádio alugado na cidade vizinha de Gravataí, o time foi rebaixado com uma média de público de apenas 464 pagantes por jogo.
"Aqui no Estado, nós temos o fenômeno da 'grenalização': os dois grandes clubes da capital foram sugando o interesse pelas demais equipes. Com o passar dos anos, o Cruzeiro perdeu espaço e a torcida não se renovou", lamenta Doering.
Situada a 18 quilômetros de Porto Alegre, Cachoeirinha foi escolhida como a sede para o recomeço, uma maneira de se afastar da concorrência direta da dupla Gre-Nal. Mas a demora nas obras da nova arena vinha adiando o processo. "Nós teríamos uma dificuldade muito grande de tocar o projeto atual adiante sem o aporte de investidores", destaca.
para usuários
virtuais não é inédita
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O longo hiato até o início do campeonato vai servir para aperfeiçoar a tecnologia e também habituar os futuros profissionais do clube à nova realidade - como o time está sem jogar desde março, boa parte do grupo foi para outros clubes.
"Queremos arregimentar forças para voltar a ser uma terceira força do Estado e, com esse pioneirismo, quem sabe até assumir a liderança em algum outro ramo", acredita o presidente do conselho.
Desafios da mudança
A ideia de oferecer o controle de um clube de futebol real para usuários virtuais não é inédita. Em 2008, o portal Meu Time de Futebol (MTDF) buscou algo semelhante - com o plano ambicioso de adquirir o controle do Juventus, de São Paulo, o projeto acabou se limitando a refundar o Maguary, um pequeno clube cearense, e chegou ao fim em apenas quatro anos.
Para Jonathan Darcie, o Cruzeiro Open Source corrige algumas das falhas de iniciativas anteriores nesse mesmo estilo. O projeto parte do próprio clube, e não de fora para dentro, e já começa com a premissa de que os interessados devem investir na plataforma.
No MTDF, o grande interesse inicial não se reverteu em recursos reais: dos mais de 100 mil inscritos originalmente, apenas 0,5% investiram alguma quantia quando chegou a hora. "Outro diferencial é o próprio Cruzeiro: não é um clube surgido apenas para o projeto. Ele existe, já está jogando competições, tem uma história centenária", argumenta.
O clube espera que a plataforma também ajude na aproximação com a população de Cachoeirinha, um relacionamento que está apenas no início - o time profissional, afinal, ainda não atuou na cidade, e toda a trajetória anterior do Cruzeiro foi construída em Porto Alegre.
"Queremos que seja um aspecto de inclusão social, que o clube seja parte da comunidade", diz Paulo Doering. "Com essa plataforma, o Cruzeiro levará o nome de Cachoeirinha para o mundo inteiro, e vai poder ser acompanhado até mesmo por quem não vai ao estádio", promete.
Fonte! Chasque (matéria) publicado no sítio oficial da BBC Brasil, por Maurício Brum, no dia 10 de maio de 2018. Abra as porteiras clicando em https://www.bbc.com/portuguese/geral-44035482?SThisFB
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