No Mês Farroupilha, leitores do Jornal do Comércio votaram e escolheram o mate como a tradição que mais orgulha os gaúchos
Leitores do JC escolheram o mate como a tradição que mais orgulha os gaúchos / ANTONIO PAZ/Arquivo/JC |
É difícil encontrar uma residência em algum dos 497 municípios do
Rio Grande do Sul em que não haja três coisas: uma cuia, uma bomba e um
pacote com erva-mate. Há quem goste do mais simples e tradicional
possível, há quem prefira com a adição de chás aromáticos e digestivos,
há quem não abra mão da cuia de porongo e há quem prefira de porcelana
ou até de metal. Há quem goste “pelando” de quente (o que não é bom para
a saúde) e há quem se sinta melhor com a temperatura da água mais
amena.
Tradição mais amada dos gaúchos e gaúchas teve de se adaptar à pandemia. Foto: Luiza Prado/JC
O chimarrão é democrático. Há espaço para todos. A tradição de
sorver o mate amargo vai passando de geração para geração, e a roda de
chimarrão, seja em família, seja entre amigos, é uma espécie de
patrimônio cultural imaterial do Rio Grande do Sul.
Desde o início do ano passado, porém, a tradição mais amada dos
gaúchos e gaúchas teve de se adaptar. Com a chegada da pandemia do novo
coronavírus, compartilhar a bebida passou a ser desindicado por questões
sanitárias. Mais de um ano e meio depois, porém, com a disseminação das
vacinas contra a Covid-19, ainda com a manutenção dos devidos cuidados,
o mate começa a voltar a ser um agregador, uma força que une as
pessoas, que aproxima os desconhecidos, um companheiro nas lidas
diárias.
O consumo do chimarrão vai além do aparentemente simples ato de
colocar a erva na cuia, adicionar a água quente, inserir a bomba e
sorver. O chimarrão é um ritual para o gaúcho. Cada um faz do seu jeito.
Não existe uma receita pronta, um modo correto ou um jeito errado de
preparar. O importante é sentir a conexão com o passado, com os povos
que deram início a essa história, e manter viva a cultura.
Ao sair às ruas, principalmente nos finais de semana ensolarados,
não é preciso procurar muito para encontrar grupos sentados em bancos,
cadeiras ou até mesmo no chão compartilhando a bebida, que tem uma
história profundamente ligada com a terra e com as populações
originárias da região Sul brasileira.
Confira o resultado da enquete do JC
Qual tradição gaúcha mais te orgulha?
1º Chimarrão – 39,8%
2º Churrasco – 23,0%
3º Hino – 12,1%
4º Chimia – 7,0%
5º Música – 7,0%
6º Dança – 5,8%
7º Vestimenta – 3,5%
8º CTG – 1,5%
Com os índios guaranis, a origem do costume
Pouca gente sabe, mas a maior tradição dos gaúchos não tem origem
no Rio Grande do Sul, mas sim na região do Guairá, atual estado do
Paraná. Foram os índios Guarani quem descobriram a erva-mate (caá) e passaram a usá-la como bebida misturada em água, tomando-a por meio de uma bomba de taquara, a tacuapi.
“Os índios do Guairá eram mais fortes do que os guaranis de
qualquer outra região, eram mais alegres e dóceis e possuíam usos e
costumes característicos, ainda não observados em qualquer outra tribo
da grande nação. Entre esses hábitos, um por certo despertou a
curiosidade entre os homens de Irala (espanhóis); tratava-se do uso
generalizado de uma bebida feita com certas folhas fragmentadas, tomadas
num pequeno porongo por meio de um canudo de taquara, em cuja base um
paciencioso trançado de fibras impedia que as partículas da folha também
fossem ingeridas”, diz o folclorista, advogado, ensaísta e um dos
fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), Barbosa Lessa, em
sua obra A História do Chimarrão, publicada em 1953.
Os colonizadores espanhóis passaram a fazer uso da caá-i
(água da erva), o que foi rechaçado pelos padres jesuítas, os quais não
viam com bons olhos os atributos desconhecidos da planta que,
inicialmente, era de uso exclusivo dos pajés em suas cerimônias. O
controle dos religiosos, porém, não foi eficiente, e o mate se difundiu
junto às comunidades. Com uma dieta fortemente baseada na carne, as
propriedades digestivas do chimarrão caíram como uma luva no cotidiano
popular. No século XVII, os próprios jesuítas passaram a incentivar o
uso do mate, trazendo-o para o Rio Grande do Sul.
Em uma época em que os tropeiros cruzavam os campos, não demorou
muito para o consumo do mate se espraiar pelo RS e, assim, começar a
jornada que iria transformá-lo na tradição mais amada do Estado.
O papel do tradicionalismo na difusão e popularização do hábito
Não há como falar sobre a importância cultural do chimarrão para o
Rio Grande do Sul sem citar o papel que o movimento tradicionalista teve
na sua popularização. Com o objetivo de recuperar os valores, a
história e valorizar e difundir a cultura local, desde suas origens, o
movimento, encabeçado por figuras como Paixão Côrtes, Barbosa Lessa e
Glaucus Saraiva elevou o mate de patamar, colocando-o como um símbolo da
ligação do gaúcho com seu passado.
A bebida, que era muito popular no Estado nos séculos XVIII e XIX,
acabou perdendo espaço com a chegada do século XX e a tendência de
migração da população das zonas rurais para as urbanas. Ligado à imagem
do homem humilde do campo, o consumo do mate entrou em declínio,
passando a ser relacionado ao atraso.
Foi com o nascedouro Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) que o
mate renasceu, ganhando um significado que, até então, não tinha. Em
1947, foi fundado o Departamento de Tradições Gaúchas (DTG), no Colégio
Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. O DTG do Julinho foi o embrião do
que hoje conhecemos como Centro de Tradições Gaúchas (CTG), que surgiu
no ano seguinte, em 1948, com a fundação do 35 CTG.
Nos CTGs, a cultura e as tradições eram vivenciadas, e não apenas
motivo de lembrança. E o mate amargo estava sempre presente nas
atividades, ganhando cada vez mais adeptos.
Conforme o doutor em História e professor do Programa de
Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)
Jocelito Zalla, Barbosa Lessa, com seu livro A História do Chimarrão
(1953), teve papel fundamental na criação do elo do gaúcho com os povos
originários. “Se o autor já havia afirmado a ligação racial do
sul-rio-grandense com o indígena, o chimarrão era o elo cultural com o
povo guarani”, destaca o pesquisador.
Lessa foi o tema da dissertação de mestrado em História de Zalla.
Em seu trabalho, o professor salienta o papel destacado que o
folclorista dava ao chimarrão dentro do processo de fundamentação do
movimento tradicionalista, lembrando uma passagem bastante
representativa do livro clássico de Lessa: “Só o chimarrão permanece
como tradição fundamental do gaúcho, elevando-se ao patamar de um
símbolo imorredouro e inconfundível”, escreveu o folclorista na obra.
Como, à época, o cavalo, a bombacha, a bota, o chapéu, o lenço no
pescoço e o churrasco na valeta do chão eram "coisas do Interior", coube
ao chimarrão trazer o campo para a cidade, fazendo a ligação da figura
típica do homem da terra, das duras lides diárias, com o cidadão urbano
que não se via espelhado no gaúcho heroico do imaginário popular.
A etiqueta na roda de chimarrão
Entre as regras, está a de sempre passar o mate com a mão direita / JOÃO MATTOS/ARQUIVO/JC
O mate não é só uma bebida. O mate é uma celebração que tem na roda
de chimarrão o seu símbolo maior da hospitalidade gaúcha. É possível e
comum preparar um chimarrão para tomar sozinho. Mas é na comunhão, na
coletividade, que a tradição floresce e se fortalece.
Todo mundo que já esteve em uma roda dessas sabe que existe uma
certa etiqueta a ser cumprida. Primeiramente, a água não pode ferver ao
fogo. Quando a chaleira chiar, já é hora de encher a cuia. O mate é
cevado pelo anfitrião, que sorve a primeira cuia. A cuia sempre deve ser
passada com a mão direita. Nunca devolva a cuia ao preparador sem antes
fazê-la roncar, afinal ninguém deve tomar o resto do seu mate. Qualquer
um pode entrar a qualquer hora na roda, mas sem furar a ordem, sempre
esperando a sua vez. Outra norma é nunca mexer na bomba. Se ela entupir,
é papel do cevador resolver o problema.
Confira algumas das regras da roda de mate:
- A água não deve ser fervida, devendo ser aquecida na casa dos 70°C
- O dono da casa ou aquele que convidou os outros para a mateada é quem enche a cuia e quem sorve o primeiro mate
- A cuia deve ser sempre passada com a mão direita
- O mate deve ser tomado todo, fazendo a cuia "roncar" antes de passá-la adiante
- Apenas o cevador pode mexer no mate, desentupir a bomba ou ajustar a erva
- Quando entrar em uma roda de chimarrão, sente à esquerda do cevador, aguardando o mate percorrer toda a roda até chegar a sua vez
- Não exagere na conversa, permanecendo muito tempo com a cuia nas mãos; o mate tem de circular na roda
Erva-mate movimenta mais de meio bilhão de reais por ano no Brasil
Além de aquecer nos dias frios, ajudar na digestão e ser um
companheiro logo cedo pela manhã ou ao fim da tarde após um longo dia de
trabalho, o chimarrão – ou apenas “chima”, para os mais íntimos –
movimenta uma grande cadeia produtiva, movendo a economia e gerando
renda para quem produz e comercializa e riqueza para o Estado como um
todo.
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
em 2020, o Rio Grande do Sul produziu um total de 214.552 toneladas de
erva-mate, em 24,3 mil hectares de área colhida, gerando R$ 231,7
milhões em produção. O RS é o segundo estado que mais produz a Ilex paraguariensis
– nome cientifico da erva-mate – no Brasil, ficando atrás apenas do
Paraná (228.382 toneladas colhidas em 29.876 hectares, ger
ando R$ 283,2
milhões em 2020).
Tamanho da produção de erva-mate no Rio Grande do Sul
Em todo o Brasil, foram produzidas 527.546 toneladas de erva no ano
passado, colhidos 69.047 hectares, gerando um valor de produção total
de R$ 576,8 milhões. A produção brasileira não sustenta apenas o consumo
local. Em 2019, conforme dados compilados pela Unidade de Estudos
Econômicos da Fiergs, foram exportados US$ 79,5 milhões em erva-mate
pelo Brasil, com o Rio Grande do Sul sendo o responsável por 81,9% desse
volume (US$ 65,1 milhões). O município de Encantado, na região Central
do Estado, é o maior exportador de erva-mate do RS, sendo responsável,
em 2019, por 75,9% de toda a exportação gaúcha do produto.
Valor gerado pela produção de erva-mate no Rio Grande do Sul
Apesar de ainda ser uma potência na produção, o Rio Grande do Sul
vem perdendo espaço na participação nacional. Em 1991, o Estado era
responsável por 75,8% de toda a erva-mate colhida no País. Nove anos
depois, em 2010, o RS colhia 61,8% de toda a produção nacional. Passada
uma década, a participação gaúcha no total produzido no Brasil caiu para
40,6%, sendo o primeiro ano da série histórica em que o Rio Grande do
Sul deixou de liderar o ranking nacional de produção (o Paraná assumiu a
liderança, colhendo 43,2% de toda a erva-mate brasileira no ano
passado). Ainda assim, o faturamento aumentou consideravelmente, na
medida em que, com a oferta menor do produto, o preço subiu. Além disso,
com a pandemia, e a impossibilidade do compartilhamento da cuia, as
vendas de erva-mate cresceram, aquecendo o setor.
Fonte! Chasque (reportagem) publicado no sítio oficial do Jornal do Comércio de Porto Alegre, na edição do dia 30 de setembro de 2021. Abra as porteiras clicando em https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/geral/2021/09/813508-chimarrao-a-tradicao-mais-amada-dos-gauchos.html
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